A pesca Ilegal, última investigação do jornalista que queria “salvar a Amazônia”

No dia 5 de junho de 2022, o jornalista britânico Dom Phillips desapareceu com o seu guia e amigo, o indigenista Bruno Pereira, no Vale do Javari (Brasil). Seus corpos foram encontrados dez dias depois, após as confissões dos principais suspeitos: pescadores clandestinos. Durante um ano, o consórcio jornalístico Forbidden Stories e os seus parceiros investigaram esta prática que ameaça os recursos naturais da Amazônia e a sobrevivência dos povos indígenas, que Bruno Pereira deu a vida para defender. O consórcio revela, pela primeira vez, a organização criminal por trás do assassinato, assim como as suas possíveis ligações com o tráfico de droga.

Por Cécile Andrzejewski
Tradução de: Mariana Abreu, Caroline Coutinho
Tempo de leitura: 15m

O PROJETO BRUNO E DOM | 1 de junho de 2023

Com : Mariana Abreu (Forbidden Stories), Sônia Bridi (TV Globo/Globoplay), Eduardo Goulart (OCCRP), Eduardo Nunomura (Amazônia Real), Rodrigo Pedroso (Ojo Público), Tom Phillips (The Guardian).

Na foto, Dom Phillips, de calças bege, havaianas e boné, tem o olhar pousado no seu interlocutor, e o escuta cuidadosamente. Os dois homens encontram-se no coração da Amazônia, sentados em pranchas de madeira à beira do rio Itaquaí, no Vale do Javari. Atrás deles, atracadas no cais, observa-se uma meia dúzia de embarcações simples.

O homem de shorts com quem conversa o jornalista britânico responde por ‘Caboco’, ou ‘Caboclo’. É conhecido pelos indígenas da região, pois costuma pescar clandestinamente nos seus territórios. Na foto, ‘Caboco’ sorri para o jornalista.

Dom Phillips encontrava-se ali a trabalho, apurando novas informações para um futuro livro, que estava em produção há meses, sobre os perigos que ameaçam a floresta tropical. O texto, ao qual o jornalista pretendia intitular de “Como salvar a Amazônia”, abordaria, entre outros assuntos, a pesca ilegal –daí a viagem ao Vale do Javari.

O projeto de Dom Phillips, no entanto, nunca se concretizou. Dois dias depois daquela foto ter sido tirada, no dia 5 de junho de 2022, o jornalista e o indigenista Bruno Pereira foram assassinados enquanto navegavam nesse mesmo rio Itaquaí, por pescadores clandestinos pertencentes à mesma comunidade que ‘Caboco’.

Dom Phillips fotografado por Bruno Pereira conversando com "Caboco", um pescador ilegal do Vale do Javari, dois dias antes do assassinato. Crédito: TV GLOBO / GLOBOPLAY

Essa foto inédita, uma das últimas de Dom Phillips, poderia ter ficado esquecida no coração da Amazônia, sem nunca ser divulgada. O momento foi imortalizado pela câmera de um dos celulares de Bruno Pereira, encontrado milagrosamente submergido num monte de lama e ramos, quase quatro meses após o assassinato.

Foram os seus colegas da Equipe de Vigilância da Univaja (EVU) –uma patrulha indígena criada por Bruno dentro da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari) –que encontraram o aparelho. No momento da descoberta, a equipe estava acompanhada de uma jornalista do consórcio Forbidden Stories, Sônia Bridi, que realizava um documentário para a Globoplay.

“Os colegas de Bruno da proteção dos territórios indígenas voltaram ao local do crime com um detector de metais para procurar provas. Além do celular, encontraram também os óculos de Dom, seus cadernos encharcados e, portanto, inutilizáveis, e seu cartão de imprensa. Eles entregaram tudo à Polícia Federal”, contou a jornalista ao consórcio. Elementos cruciais para reconstituir os últimos instantes da vida dos dois homens e confirmar o cenário estabelecido pelos detetives da polícia.

Foram necessários meses para reviver o celular e extrair seus dados. Conseguir recuperar as últimas fotos tiradas por Bruno parecia, durante esse período, um projeto impossível, pois, como explicou ao consórcio Sônia Bridi: “O telefone passou vários meses debaixo de água, antes do nível do rio baixar.”

Após serem recuperadas, as imagens foram confiadas às 16 mídias parceiras do “Projeto Bruno e Dom”, lideradas por Forbidden Stories para continuar o trabalho de Bruno Pereira e Dom Phillips sobre os diversos saqueadores da floresta amazônica. Durante um ano, mais de 50 jornalistas investigaram a grilagem de terras amazônicas, as ligações entre atividade agropecuária e o desmatamento, a exploração mineira e a pesca ilegal –investigações que resultaram na perda de dois protetores apaixonados pela floresta.

Legenda: A equipe de vigilância da Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari), a EVU, coordenada por Bruno Pereira, aqui em busca de provas, quase quatro meses após os assassinatos. Crédito: TV GLOBO / GLOBOPLAY

Dom Phillips, 57 anos, vivia no Brasil há quinze anos, onde se instalou inicialmente como jornalista musical. Nos últimos anos, desenvolveu uma paixão pelas questões ambientais, tendo investigado o desmatamento e a sua relação com a mineração ilegal e a pecuária intensiva, principalmente para o jornal The Guardian.

Sua mulher, Alessandra Sampaio, e o seu colega e jornalista do Guardian, Jonathan Watts, pintam retratos semelhantes do jornalista britânico: um homem curioso para todos os que o conheciam e sempre inquisitivo. “Ele tinha tantos amigos e tantos novos amigos! Nem sei como ele achava tempo para mim”, contou Alessandra Sampaio ao consórcio jornalístico.

Bruno Pereira, 41 anos e pai de três filhos, era um dos maiores especialistas brasileiros em questões dos povos indígenas, ao lado dos quais trabalhou para preservar sua soberania. “Ele se entregava de corpo e alma ao seu trabalho”, contou ao consórcio Armando Soares, um dos seus antigos colegas da Funai, antes de lamentar: “O Bruno faz muita falta ao Brasil e às comunidades indígenas”.

Os dois homens se conheceram em 2018, no Vale do Javari, o mesmo lugar onde seriam assassinados quatro anos mais tarde. Bruno Pereira, já na época um dos melhores conhecedores da região, servia frequentemente de guia para o jornalista. Nessa região do Brasil, não muito longe das fronteiras com o Peru e a Colômbia, e com uma superfície mais extensa que a Áustria, existe a maior concentração de povos isolados do país. Na época, o indigenista ocupava a posição de Coordenador Geral dos Povos Indígenas Isolados e Recentemente Contatados na Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), uma estrutura governamental encarregada de garantir a segurança dos povos indígenas brasileiros.

Em sua reportagem para o jornal The Guardian de 2018, “Tribos perdidas: uma missão de 1.000 km pela floresta tropical para proteger uma aldeia amazônica”, Dom Phillips começa por descrever Bruno, “agachado na lama perto de uma fogueira”, abrindo “o crânio cozido de um macaco com uma colher” durante o café da manhã, enquanto “falava de política”.

Em seguida, o jornalista descreve os perigos aos quais são expostos os povos isolados da região, “mais ameaçados do que nunca” por “balsas de extração de ouro” a leste, “pecuaristas” a sul e “gangues de pescadores” no centro do Vale. “É vital cuidar do bem-estar deles”, adverte Dom, já determinado em “salvar a Amazônia” e as pessoas que de lá se originam. Ao mesmo tempo, descreve a expedição de 1.000 km pela reserva do Vale do Javari, com “suas florestas densas e montanhosas e seus rios sinuosos.” Quatro anos depois, foi nessas águas, do rio Itaquaí, que Dom Phillips e Bruno Pereira foram mortos.

“O Dom estava muito animado com essa viagem em 2018. Ele achava que ia ser uma experiência importante e profunda para ele. Isso ficou muito claro no relato que ele escreveu quando voltou”, contou ao consórcio Jonathan Watts, amigo íntimo de Dom Phillips e repórter do jornal The Guardian. Hoje, se orgulha de poder falar sobre Dom Phillips “como se fala de um amigo” e o descreve como um “grande homem, que sonhava com uma sociedade melhor, e que estava convencido de que o jornalismo era a melhor maneira de alcançá-la”.

Cartão de imprensa de Dom Phillips, encontrado quase quatro meses após sua morte pela equipe de vigilância da Univaja. Crédito: TVGLOBO / GLOBOPLAY

 

O clã Bolsonaro contra a Amazônia

 

Quando Dom Phillips decide voltar ao Vale do Javari em 2022, volta a procurar Bruno Pereira, com quem trocava mensagens regularmente. Desde a sua última expedição, a situação política no Brasil mudou de figura com a chegada ao poder do Presidente de extrema-direita Jair Bolsonaro, em janeiro de 2019.

Em um vídeo que se tornou viral, o ex-Presidente repreende Dom Phillips, que lhe perguntou o que contava fazer para conter o desmatamento na Amazônia: “Você tem que entender que a Amazônia é do Brasil, não é de vocês”, respondeu Bolsonaro.

Já Bruno Pereira, nessa mesma época, pediu licença da Funai, que passou a ser dirigida por um missionário evangélico conhecido do lobby do agronegócio. Juntou-se em seguida à Univaja. Lá, Bruno formou a equipe de vigilância EVU, encarregada de obter provas dos crimes ambientais –a mesma equipe que encontraria o telefone celular do indigenista após a sua morte.

Com base nas informações recolhidas por Bruno e pela equipe Univaja, houve inúmeros e repetidos alertas às autoridades, que iam da polícia ao Ministério Público, passando pela Funai, sobre casos de invasões de terras indígenas por conta da pesca ilegal. Entretanto, as denúncias foram em vão, visto que a Univaja nunca recebeu uma resposta sequer por parte das instituições.

“Sempre que ele [Dom Phillips] ia fazer uma reportagem, ele compartilhava o seu programa comigo. Dessa vez ele me disse: ‘Vou me encontrar com alguns pescadores. O que eles estão a fazer não é legal, mas não há problema em ir lá conversar com eles’”, contou sua parceira, Alessandra Sampaio ao consórcio Forbidden Stories.

Um peixe em particular chamou a atenção de Dom: o pirarucu, uma espécie de água doce que pode pesar até 200 quilos e medir até 3 metros de comprimento. Em 2021, enquanto trabalhava no seu livro, Dom Phillips chegou inclusive a visitar uma reserva dedicada à sua exploração sustentável. Este peixe, o maior da América do Sul, é consumido em Lima, São Paulo ou Bogotá, onde os gastrônomos locais apreciam a sua carne macia e saborosa, de sabor semelhante à iguaria europeia Juliana.

Porém, no Brasil, a pesca do pirarucu é estritamente regulamentada, já que a espécie milenar esteve em risco de extinção devido à sobrepesca. O Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), autoridade ambiental federal, implementou em 2004 regras rigorosas, que limitam a pesca do pirarucu a poucos meses por ano.

Vista aérea do Vale do Javari. Crédito: TVGLOBO / GLOBOPLAY

Essas regras são ainda mais severas dentro dos limites do território indígena do Vale do Javari–o segundo maior do país. Nessas áreas, a pesca do pirarucu, assim como a de qualquer outra espécie, é pura e simplesmente proibida. A Constituição Federal garante aos povos indígenas a demarcação dos seus territórios, ou seja, a delimitação das áreas que lhes pertencem unicamente. Em 30 de maio de 2023, a Câmara dos Deputados adotou um texto que poderia ameaçar a demarcação atual.

“A terra demarcada pertence exclusivamente aos povos indígenas. Se você tirar uma pedra dessa região, já está cometendo um crime constitucional”, explicou ao consórcio Armando Soares. “Também é ilegal entrar nesses territórios sem uma autorização, há um protocolo a seguir. Portanto, os pescadores clandestinos cometem, na realidade, vários crimes: primeiro, eles entram na zona e logo eles retiram recursos”. Para o antigo funcionário da Funai, não há dúvidas: “Foi por causa disso que Dom Phillips e Bruno Pereira foram assassinados”, pois incomodavam o negócio lucrativo, a rede cada vez mais organizada dos invasores do território indígena.

“O Bruno era visto como um obstáculo para os traficantes, e os seus instrumentos de proteção do meio ambiente eram vistos como uma barreira”, explicou ao consórcio Forbidden Stories Eliésio Marubo, advogado da Univaja. “Os lagos da terra indígena do Vale do Javari são cobiçados por causa do pirarucu, o peixe mais lucrativo da região”, indica um relatório de 2021, escrito em parceria com organizações indígenas, da ONG de proteção das florestas tropicais Rainforest Foundation Norway.

Bruno Pereira, que era regularmente alvo de ameaças, passou a fazer suas patrulhas armado. Ele via, com os seus próprios olhos, a violência se instalar na região. Em setembro de 2019, três anos antes do seu desaparecimento, um funcionário da Funai, Maxciel Pereira dos Santos, foi assassinado em Tabatinga, não muito longe do Vale do Javari, provavelmente em retaliação à apreensão de carne e peixe frutos de caça e pesca ilegais, que tinha pessoalmente coordenado durante suas patrulhas.

Bruno foi mentor de Maxciel Pereira dos Santos na Funai, onde patrulhava as águas do Vale do Javari. Eram expedições de alto risco: “Ele dizia que era um trabalho para homens corajosos”, disse sua mãe, Noemia Pereira dos Santos, ao Guardian. A investigação, que estava estagnada, foi reaberta quando começaram as apurações sobre o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips.

Escritório da Univaja, com o slogan: "Unidos pela defesa e autonomia dos povos indígenas do Vale do Javari". Crédito: Bruno Kelly / Amazônia Real

Entre novembro de 2018 e novembro de 2019, foram registrados oito ataques a tiro contra a Base de Proteção Ambiental Itui-Itaquaí, o posto de controle de referência da terra indígena –um recorde desde o estabelecimento da demarcação das terras indígenas. Os ataques foram atribuídos a pescadores e caçadores clandestinos, segundo funcionários da Funai.

Relatórios da Univaja chegam a apontar um possível suspeito, um pescador ilegal conhecido como ‘Pelado’. “Pelado foi apontado como um dos autores de vários ataques com arma de fogo à base de proteção da Funai entre 2018 e 2019″, afirmam duas cartas de abril de 2022. ‘Pelado’, cujo verdadeiro nome é Amarildo Costa de Oliveira, é apresentado como o “líder da equipe” que praticava invasões noturnas em terras indígenas para capturar peixes, incluindo o famoso pirarucu.

Em entrevista ao The Guardian, as pessoas próximas do pescador o descrevem como um homem que, na sua adolescência, jogava futebol à beira-rio e que, aos 21 anos, participou voluntariamente de uma expedição histórica ao Vale do Javari, em busca de um povo indígena não contactado, ansioso para compartilhar essa aventura com seus filhos.

Mas com o passar dos anos, ‘Pelado’ começou a organizar expedições de pesca clandestina, a cada duas ou três semanas, em terras indígenas. Acompanhado de meia dúzia de homens armados, voltavam carregados com toneladas de pirarucu e de tartarugas tracajás. Segundo seu tio, Raimundo Bento da Costa, ‘Pelado’ “queria ser o chefe. Ele queria dominar essa região”. Em várias ocasiões, o pescador ameaçou Bruno Pereira. E em junho de 2022, os caminhos de Bruno e Dom e o caminho de ‘Pelado’ se cruzariam.

Pescadores em um lago no Vale do Javari. Crédito: Alex Rufino / OJO PUBLICO

 

Duplo homicídio no rio Itaquaí

 

O rio Javari é a fronteira natural entre Brasil, Peru e Colômbia. Entre os seus vários ramos, encontra-se o rio Itaquaí. Os dois rios juntam-se em Atalaia do Norte, ponto de entrada para a reserva do Javari. Foi dessa cidade brasileira que, dia 2 de junho de 2022, Dom e Bruno partiram, rio acima, com destino ao Lago do Jaburu.

Conforme relatado pela denúncia obtida por Forbidden Stories, no dia 4 de junho, quando Dom Phillips e Bruno Pereira se encontravam a bordo de um barco de uma equipe de vigilância da Univaja, se depararam com a embarcação de ‘Pelado’. Para impedir que os pescadores penetrassem na terra indígena, a equipe de vigilância seguiu a embarcação. Foi então que ‘Pelado’ e duas outras pessoas a bordo levantaram as suas espingardas, em sinal de advertência.

No mesmo dia, o pescador foi até à casa do seu tio, onde Dom Phillips e Bruno Pereira estavam hospedados. Após ter cumprimentado o indigenista, ‘Pelado’ ouviu Bruno pedir a Dom que “tirasse uma foto dele”, um gesto que provavelmente interpretou como ameaça.

No dia seguinte, às 6h da manhã, Dom Phillips e Bruno Pereira partiram novamente em direção à Atalaia do Norte. Fizeram uma breve escala em São Rafael, onde o representante da Univaja tinha um encontro marcado com um líder local, mas este não apareceu, então decidiram voltar para o rio Itaquaí. Segundo a denúncia, por volta das 7h, ‘Pelado’ avistou os dois homens, a bordo do seu barco, fotografando sua embarcação, descrito por Bruno como “barco do invasor”. ‘Pelado’ decidiu então chamar Jefferson da Silva Lima, vulgo ‘Pelado da Dinha’, como reforço, e juntos alcançaram a embarcação de Dom Phillips e Bruno Pereira.

A partir deste ponto, as histórias dos dois pescadores divergem. No entanto, segundo a investigação policial, ‘Pelado’ e ‘Pelado da Dinha’ dispararam contra os dois homens várias vezes, lhes dando pouca ou nenhuma oportunidade para revidar, apesar de Bruno Pereira ter se defendido com alguns disparos. Os corpos foram em seguida atirados à água, antes de serem queimados e desmembrados.

Esta versão dos fatos é refutada pelos advogados dos três pescadores, Dra. Goreth Campos Rubim, Lucas Sá e Dr. Américo Leal. Este último se tornou conhecido no Brasil após defender o assassino da missionária e defensora da Amazônia, Dorothy Stang, morta em 2005, em tribunal. Durante o julgamento, o advogado acusou a vítima de ser responsável pela própria morte, afirmando que seu falecimento é “fruto da própria violência que propagou”.

De acordo com a equipe de defesa, ‘Pelado’ estava apenas se defendendo de Bruno Pereira, que acusa de ter disparado primeiro –uma declaração reiterada pelo acusado, que afirmou estar “arrependido” durante as audiências.

Fotografia do "Pelado", de uma reportagem da Univaja - Crédito: Forbidden Stories / UNIVAJA

Foram necessários dez dias de busca para encontrar os corpos dos dois homens –durante os quais o então Presidente Jair Bolsonaro se permitiu culpar as vítimas, afirmando que a viagem deles se tratava de uma “aventura não recomendável”. Foram as confissões dos pescadores que, dias mais tarde, levaram os investigadores aos restos mortais dos dois homens. Confissões obtidas “sob tortura”, segundo os advogados dos três suspeitos, sem especificar qual unidade policial teria causado os maus tratos.

A equipe de defesa também rejeita, de forma mais ampla, a apresentação dos fatos apresentados pelo Ministério Público, e evoca um conflito “fabricado” entre indígenas e pescadores. “O Estado do Amazonas tem cerca de 40.000 quilômetros de rios navegáveis (…) e aí chega alguém e proíbe que os pescadores pesquem num determinado lugar. Mas ali é um celeiro de alimento para todo mundo”, explicou ao consórcio o Dr. Américo Leal.

Do lado dos investigadores não existem dúvidas: o alvo dos pescadores era Bruno Pereira, consultor da Univaja. Dom foi assassinado para “não deixar testemunhas do crime”. Mas Alessandra Sampaio, viúva do jornalista, se recusa a considerar seu companheiro como uma simples “vítima colateral”: “Ele estava lá, conhecia os riscos, tirou essas fotos dos pescadores, por isso foi morto”.

Os pescadores da região, entrevistados pelo consórcio (veja o quadro abaixo), evocam a miséria e as dificuldades enfrentadas para encontrar peixes em uma área sobre-explorada e cada vez mais restrita, justificando assim a sua entrada ilegal nos territórios indígenas. O controle quase inexistente na fronteira com o Peru e a Colômbia dificulta o rastreamento do peixe e permite que o pescado capturado ilegalmente se torne “legal” com uma simples declaração.

“É verdade que a região também é habitada por dignos ribeirinhos, que, na busca de subsistência, praticam a atividade da pesca (toleradas nos arredores da zona indígena, nota do editor) (…). Porém, tal realidade não deve servir para esconder o fato de que o Vale do Javari abarca a pesca ilegal de vultosas montas, financiadas por associações criminosas altamente armadas”, observa a comissão da Câmara dos Deputados brasileira dedicada a acompanhar a investigação dos assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira, num relatório publicado em novembro de 2022. Os seus membros dizem estar convencidos de que “a pesca ilegal na região do Vale do Javari não serve a ribeirinhos em busca de subsistência, mas sim a organizações de maior porte, com investimentos vultosos e lucros exorbitantes, não compatíveis com a capacidade financeira daqueles que comumente habitam as margens dos rios”.

A comissão aponta para a escala das apreensões de pesca feitas pela polícia como prova. De acordo com dados apresentados aos parlamentares pela Polícia Federal em julho de 2022, a polícia apreendeu 4 toneladas de pirarucu na região de Tabatinga e 10 toneladas em Manaus. A data dessas apreensões não foi especificada pela comissão. “O próprio Amarildo [verdadeiro nome de ‘Pelado’], autor dos cruéis assassinatos, foi preso com uma tonelada de pirarucu capturado ilegalmente”, afirma o relatório, antes de acrescentar que “uma tonelada de peixe em posse de um pescador não pode ser fruto de pesca artesanal, muito menos voltada à subsistência”.

Em Letícia, Colômbia, dois trabalhadores carregam um pirarucu decapitado. Crédito: Alex Rufino / OJO PUBLICO

Quem financia afinal a pesca ilegal? No Vale do Javari, um nome surge recorrentemente: ‘Colômbia’. O mesmo ‘Colômbia’ que as autoridades brasileiras consideram como o provável mandante do assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira. Conforme a descrição policial, ‘Colômbia’ forneceu a munição para os assassinatos, ligou para o ‘Pelado’ antes e depois do crime e teria ademais pago o advogado do suspeito.

‘Colômbia’, atualmente sob custódia policial, negou qualquer envolvimento no caso, afirmando que só mantinha contato com ‘Pelado’ por razão de “relações comerciais”. O seu advogado não quis comentar o caso.

Um depoimento do relatório da comissão parlamentar também aponta ‘Colômbia’ como o “mandante do assassinato de Maxciel”, o funcionário da Funai morto em Tabatinga, três anos antes do caso de Bruno Pereira e Dom Phillips –informação sustentada por uma fonte próxima ao caso.

Já em março de 2022, três meses antes dos assassinatos, relatórios da Univaja descreviam ‘Colômbia’ como “o maior comprador [de peixe] e atual financiador de invasões do território indígena do Vale do Javari”. A sua verdadeira identidade, sobre a qual ainda pairam dúvidas, seria Ruben Dario da Silva Villar. Ele é hoje considerado pela polícia como o “líder e suporte financeiro de um grupo criminoso armado que atua na pesca ilegal na região”.

Essas conclusões são apoiadas por um complemento de informação emitido pelos procuradores encarregados do caso e adquirido pelo consórcio Forbidden Stories. O documento confirma a existência de uma “organização criminosa” no Vale do Javari, chefiada por ‘Colômbia’ e na qual ‘Pelado’ teria um papel de “chefia regional” em Atalaia do Norte.

Vários outros nomes desta organização também são mencionados nas denúncias da Univaja. Entre eles, o de ‘Caboco’, pescador com quem Dom Phillips conversava na foto tirada por Bruno Pereira dois dias antes da sua morte e que, segundo a justiça brasileira, estaria sob as ordens de ‘Pelado’. ‘Caboco’ foi preso por possíveis ligações com o assassinato, antes de ser liberado em dezembro de 2022 por falta de provas.

O rio Itaquaí. Crédito: TV GLOBO / GLOBOPLAY

“Não temos dúvidas, após todo o exposto, estarem os assassinatos de Bruno e Dom em um contexto muito maior de criminalidade”, lê-se no relatório da Câmara dos Deputados. “Está evidente a existência de associações que financiam não só a pesca ilegal, como também podem estar a utilizando para a lavagem de dinheiro proveniente do tráfico internacional de drogas”.

O tráfico de drogas poderia explicar o mistério em torno da verdadeira identidade de ‘Colômbia’, suspeitado de ter ligações com o crime organizado. De fato, o Vale do Javari não fica longe das rotas utilizadas habitualmente pelos traficantes de drogas, visto que a Colômbia e o Peru são os dois maiores produtores de cocaína do mundo, enquanto o Brasil é o segundo maior consumidor da droga –ficando somente atrás dos Estados Unidos.

Até hoje, apenas um documento oficial menciona a possível ligação entre ‘Colômbia’ e o tráfico de drogas. Trata-se de um relatório de inspeção do Ibama de outubro de 2022, obtido pelo consórcio Forbidden Stories. “Os Chefes do Tráfico financiam atividades ilegais (caça, pesca, garimpo e exploração de madeira) fornecendo motor, gasolina e equipamentos além de dar segurança aos que realizam essas atividades”, detalha o documento. Acrescentando que existe “um homem conhecido como ‘Colômbia’, que se acredita que controle a venda de pescados clandestinos e o tráfico de drogas na região”.

A investigação policial sobre ‘Colômbia’, que se encontra atualmente na mesa do procurador, é a única que poderá estabelecer a veracidade da ligação entre pesca ilegal e narcotráfico. O suspeito de ter ordenado os assassinatos de Dom Phillips e Bruno Pereira não será julgado ao mesmo tempo que ‘Pelado’, Amarildo da Costa Oliveira; ‘Pelado da Dinha’, Jefferson da Silva Lima; e ‘Dos Santos’, Oseney da Costa Oliveira –os pescadores já acusados.

Os três homens foram ouvidos por um juiz, que irá agora decidir se o caso deverá ser apresentado ao tribunal do júri, provavelmente no próximo ano. Em maio de 2023, o ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, foi acusado de homicídio qualificado e ocultação de cadáveres na investigação das mortes de Dom Phillips e Bruno Pereira. Segundo a Polícia Federal, Xavier permitiu que o crime se expandisse na região ao não tomar nenhuma medida cautelar após a morte de Maxciel dos Santos, apesar de vários pedidos de proteção pela parte dos funcionários da Funai, levando indiretamente aos assassinatos do jornalista e do indigenista. “Eu quero justiça”, disse Alessandra Sampaio ao consórcio Forbidden Stories. “Mas não por mim; pela proteção do Vale do Javari e da Amazônia”.

 

PESCADORES PRECÁRIOS E CONTROLES INEXISTENTES NA FRONTEIRA

Para “O Projeto Bruno e Dom”, Rodrigo Pedroso, jornalista da mídia peruana Ojo Público, voltou ao Vale do Javari, passando pelo Brasil, Peru e Colômbia, para seguir o rastro do pirarucu.

Venda de pirarucu no mercado de Leticia, Colômbia. Crédito: Alex Rufino / OJO PUBLICO

Em Atalaia do Norte, encontrou Raimundo Pinheiro, um pescador de 51 anos, que passou toda a sua vida atrás dos peixes. “Éramos sete filhos, meu pai nos criou sozinho. Eu não sei ler, tudo o que aprendi a fazer foi pescar. Somos cerca de 600 pessoas aqui que vivem apenas disso. Costumávamos trabalhar com os nativos, éramos parceiros, depois veio a demarcação e tivemos que sair. A área diminuiu.” O pescador garante que trabalha fora das áreas protegidas do rio Javari, “num pedacinho de terra que nos pertence”. Mas afirma que as invasões das terras indígenas não vão parar. E por um bom motivo: “Não há mais peixes por aqui. A situação está ficando cada vez mais difícil, a área de pesca já é pequena e eles querem reduzi-la ainda mais… Do que vamos viver? Depois, faz as contas: para um quilo de pirarucu vendido a 10 reais [1,80 euros], é preciso gastar cerca de 835 reais [150 euros] tendo em conta gasolina, sal, gelo e o óleo necessário. Sem contar com o “rancho”, a plataforma de pesca, instalada no rio, que vale vários milhares de reais [centenas de euros] e os homens que a acompanham para pescar, entre duas e cinco pessoas.”

 

Em Islandia, cidade no lado peruano do rio Javari, a miséria é a mesma. Juan*, que vende a sua colheita a 7 soles [1,70 euros] o quilo, vai pescar no Brasil, do outro lado da fronteira, em uma frequência de três a quinze dias. E de maneira ilegal. “Se eu tivesse outra opção legal, eu a escolheria”, diz ele. “Mas eu não estudei, trabalho desde criança, tenho três filhos”. Em Atalaia do Norte, Almério Alves Wadick, um indígena, entende as dificuldades: “Os lagos fora das terras indígenas estão saturados, então os pescadores acabam indo para o interior,” explica.“Todas as pessoas que conhecemos concordam que as áreas de pesca autorizadas estão sobre-exploradas e não produzem mais peixes, o que obriga os pescadores a se servirem ilegalmente das áreas demarcadas.”

 

A prática é generalizada, porque a fronteira é particularmente porosa, com pescadores que se deslocam frequentemente de um país ao outro, vendendo seus produtos em ambos os lados do rio Javari. Assim, o pirarucu fresco pescado no Brasil acaba sendo geralmente vendido na Colômbia, enquanto o pirarucu salgado acaba no Peru. Portanto, como o Brasil, o Peru e a Colômbia também regulamentam a pesca do pirarucu, embora de forma menos rigorosa. “Há uma licença para transportar o peixe de um país para outro, mas ela é limitada”, explicou Mario Jimenez, prefeito peruano de Islandia e ex-pescador. Há controles, mas é claro que há contrabando de peixes, como em qualquer outro lugar!”

 

Do lado brasileiro, “47 multas por pesca, transporte ou venda de pirarucu [foram aplicadas pelo Ibama] em cinco municípios da região do Vale do Javari desde 1998, a maioria em Tabatinga” –ou seja, cerca de duas multas por ano para um total de “230 infrações relacionadas com a pesca ilegal”, de acordo com dados da organização Pública compartilhados em setembro de 2022 pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). No Peru e na Colômbia, funcionários das autoridades locais de fiscalização entrevistados pelo consórcio falam de controles impossíveis, pois a origem do pescado é determinada apenas pela simples declaração dos pescadores. Muitos também denunciam a falta de recursos dos monitores, que lidam com salários muitas vezes pagos com meses de atraso, instalações de trabalho dilapidadas, e até mesmo com a falta de combustível ou de barcos.

 

“Não há muito controle sobre as compras e vendas”, diz Santiago Duque, professor do Instituto de Pesquisa da Amazônia Colombiana, Imani. “Atualmente, na Colômbia, a origem do peixe é estabelecida com base na boa-fé. Alguns pescadores vendem seus peixes para outros, diretamente no rio, e depois os vendem aqui (…). Portanto, não sabemos a origem do peixe”. Essa porosidade transforma o peixe capturado ilegalmente em terras indígenas brasileiras em peixe legal: sua origem declarada será aquela que o pescador quiser propor às autoridades. Além disso, os peixes são trocados no rio entre diferentes embarcações, dificultando ainda mais o rastreio do produto. O destino final do pirarucu do Vale do Javari pode ser qualquer restaurante de Lima ou Bogotá, servido e apresentado como qualquer peixe de origem legal.

 

 

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