Da Amazônia até a Europa: como os gigantes da pecuária continuam a exportar carne vinculada ao desmatamento

Na segunda parte do “Projeto Bruno e Dom”, Forbidden Stories dá continuidade ao trabalho do jornalista Dom Phillips sobre a floresta amazônica, um dos últimos escudos naturais do planeta contra o aquecimento global, que é hoje gradualmente consumida pela indústria pecuária. Nos últimos seis anos, o equivalente a aproximadamente 800 milhões de árvores foram cortadas perto de abatedouros que exportam para todo o mundo, de acordo com novos números revelados pelo consórcio jornalístico da Forbidden Stories. Uma demanda global por carne que está contribuindo para a destruição da Amazônia, visto que as multinacionais brasileiras investigadas pelo jornalista Dom Phillips continuam vendendo carne bovina proveniente de áreas de risco, até chegar no prato dos consumidores europeus.

Por Youssr Youssef
Tempo de leitura: 12m

O PROJETO BRUNO E DOM | 2 de junho de 2023

Com André Campos (Repórter Brasil), Andrew Wasley, Elisângela Mendonça, Robert Soutar (The Bureau of Investigative Journalism), Jeroen Wester, Karlijn Kuijpers (NRC), Carina Huppertz, Dajana Kollig, Julius Bretzel (Paper Trail Media), Eduardo Goulart (OCCRP)
 
Tradução de: Caroline Coutinho

 

Essa parece ser a última gota“, escreve o jornalista Dom Phillips no Twitter, no fim de 2021, enquanto uma nova investigação é publicada denunciando as três maiores multinacionais da pecuária brasileira: JBS, Marfrig e Minerva. Nomes desconhecidos pela grande parte dos consumidores europeus, mas cuja importância é comprovada pelo seu tamanho de mercado. As três empresas são responsáveis por cerca de 70% das exportações de carne bovina brasileira. Além disso, acompanhada de empresas como Danone e Heineken, a JBS é uma das 15 gigantes alimentícias globais, segundo ranking anual da Forbes. Em 2022, a empresa afirmou ter abatido aproximadamente 75 mil bovinos por dia, destinados a clientes em mais de 190 países. Com cerca de metade da capacidade, Marfrig e Minerva continuam sendo dois grandes atores do setor, do abate à venda, e cuja produção é majoritariamente centrada na carne bovina.

Essa carne é, de longe, a principal responsável pelo desmatamento da Amazônia. De dimensões tão extensas quanto as da Europa, a floresta tropical abriga mais de um décimo das espécies mundiais, e atua como um “sumidouro de carbono”, ou seja, absorve mais CO2 do que emite. Portanto, possui um papel crucial na limitação dos gases de efeito estufa e no combate às mudanças climáticas que assombram o futuro do planeta. O assunto se tornou rotineiro nos trabalhos de Dom Phillips. O correspondente do jornal The Guardian, que fez do Brasil seu lar em 2007, dedicou seus últimos trabalhos à indústria da carne no Brasil, antes de ser brutalmente assassinado junto com o indigenista Bruno Pereira, enquanto trabalhava em uma investigação em 2022.

Embora a multinacional JBS se comprometeu a zerar o balanço de suas emissões de gases causadores do efeito estufa até 2040, Dom ressaltou em sua última contribuição ao jornal britânico, datado de março de 2021, que grande parte dessa meta poderia ser alcançada se “a JBS parasse o desmatamento de seus fornecedores na Amazônia“. Em uma reportagem anterior, o jornalista também expressou preocupação com a crescente demanda de carne bovina por parte da China “às custas da floresta amazônica“.

Para esta segunda parte do “Projeto Bruno e Dom”, que dá continuidade ao trabalho do jornalista assassinado, revelamos como, para suprir a demanda internacional, principalmente da China, mas também da Europa, as três multinacionais brasileiras da carne investigadas por Dom Phillips continuam a comercializar com fazendas responsáveis pelo desmatamento da Amazônia.

 

“Lavagem” de gado

Como qualquer indústria, as empresas pecuárias necessitam de matérias-primas, neste caso, o gado, buscados em fazendas próximas a seus abatedouros. Hoje, as empresas JBS, Marfrig e Minerva têm a obrigação de garantir que seus fornecedores diretos não estão envolvidos com desmatamento ilegal. No entanto, antes de chegar ao abatedouro, um animal geralmente passa por duas a três propriedades, ou até mais. “As fazendas que alimentam, criam, engordam e enviam animais para abate estão se tornando cada vez mais raras“, afirma Tiago Reis, investigador do Trase, um projeto da ONG Global Canopy e do Stockholm Environment Institute, que busca trazer mais transparência para as cadeias de abastecimento ligadas ao aquecimento global.

Por ganância, alguns fazendeiros aproveitam da estrutura do mercado e da falta de monitoramento para esconder a verdadeira origem de seus rebanhos. Em resumo, esses fazendeiros “lavam” seu gado, deslocando seus animais de uma fazenda “suja”, ou seja, relacionada à destruição da floresta, para uma fazenda “limpa”, sem desmatamento, como etapa intermediária antes do abate. Em 2020, Dom Phillips, para o jornal The Guardian, em parceria com a Repórter Brasil e a Bureau of Investigative Journalism (TBIJ), havia descoberto um exemplo concreto dessa prática, e revelou inclusive uma cumplicidade entre a multinacional JBS e um pecuarista sancionado por desmatamento ilegal.

Uma nova investigação, coordenada pela Forbidden Stories, em parceria com os jornais que expuseram essa história, bem como o diário holandês NRC e a agência de investigação alemã Paper Trail Media (PTM), revelam que o pecuarista implicado na investigação de Dom Phillips, Ronaldo Rodrigues Da Cunha, não cessou suas práticas ilegais. Ao contrário, para revender sua carne, Ronaldo encontrou um novo cliente: a Marfrig, uma das três gigantes que Dom Phillips investigava.

 

Negócios de pai para filho

Na nossa família, a gente já nasce com um pé na terra e o olho no gado“, explica Ronaldo em narração para um programa do Canal Rural dedicado à promoção da pecuária brasileira. Na tela, um gado extenso, nos confins da floresta amazônica.

Gado do fazendeiro Ronaldo Rodrigues da Cunha, no Mato Grosso - Captura de tela do programa Pecuária em Foco.

A história dos Rodrigues Da Cunha, pecuaristas há quatro gerações, é também, até certa medida, a história da relação dos brasileiros com a floresta amazônica. No início, o mito. Sudestino de origem, Ronaldo tinha vinte e poucos anos quando viajou para se juntar ao pai, que havia comprado uma fazenda no Mato Grosso. Era a década de 70, durante a ditadura militar, uma época em que a Amazônia ainda era considerada um território a ser conquistado. O terreno era vendido a preço de banana. A floresta estava destinada a se tornar o futuro “celeiro do mundo, se conseguirmos disciplinar o meio ambiente“, como explica, em um de seus livros, o geógrafo François-Michel Le Tourneau, especialista em Amazônia brasileira do CNRS. Já, em 2016, Ronaldo Rodrigues da Cunha chegou a ser agraciado como cidadão honorário do Mato Grosso, pois ele e sua família “acreditaram na região“.

Essa é a saga dos Rodrigues da Cunha, ou, pelo menos, o que contava o site da família, agora deletado. Desde então, Ronaldo Rodrigues da Cunha percorreu um longo percurso e queimou algumas terras pelo caminho. Hoje Ronaldo é considerado um dos maiores pecuaristas do país, mas esta não é sua única proeza. Em 2012, ele foi investigado pelo Ibama, órgão de regulamentação ambiental do país, e multado em quase 2,2 milhões de reais, ou cerca de 900 mil euros na época, por desmatamento ilegal em sua fazenda Estrela do Aripuanã, no noroeste de Mato Grosso. No processo, o Ibama colocou parte da fazenda —o equivalente a cerca de 2 mil campos de futebol— sob embargo, ou seja, desativação forçada. A criação de gado seria, portanto, proibida.

 

Da JBS a Marfrig, “os produtores sempre encontram uma solução

Onze anos após a proibição, a vegetação ainda não voltou a crescer muito e as atividades no terreno não pararam. De fato, imagens de satélite mostram a presença de animais na área interditada. Contatado por telefone e e-mail, o pecuarista não respondeu às solicitações de entrevista de Forbidden Stories.

Junho de 2022. Gado pastando na parte embargada, na fazenda Estrela do Aripuanã, propriedade de Ronaldo Rodrigues da Cunha. Imagens de Google Earth/Maxar analisadas pela SkyTruth.

Documentos sigilosos obtidos pela Forbidden Stories atestam a transferência, em agosto de 2022, de quase 500 bois de uma fazenda de Ronaldo Rodrigues da Cunha para outra. Especificamente, da fazenda interditada, Estrela do Aripuanã, até a fazenda de engorda Estrela do Sangue, fazenda considerada “limpa”, ou seja, sem relação com desmatamento, a algumas centenas de quilômetros de distância. Outros documentos confirmam que em janeiro de 2023 mais de 200 bois foram enviados da fazenda Estrela do Sangue ao frigorífico Marfrig, na cidade de Tangará da Serra.

Três anos antes, Dom Phillips revelou um esquema de lavagem de gado semelhante envolvendo as mesmas fazendas, mas com um destino diferente. O gado ‘lavado’ foi parar em dois frigoríficos da JBS. A empresa declarou, no entanto, que não obtém mais seus suprimentos de lá. Hoje, a carne dos Rodrigues da Cunha é destinada à Marfrig, segunda maior produtora de carne bovina do Brasil, em um abatedouro da multinacional já conhecido por comprar gado de terras antes habitadas por uma comunidade indígena, como revelou a TBIJ no ano passado. De acordo com dados comerciais analisados pela mídia, desde 2014, o abatedouro exportou mais de um bilhão de euros em produtos bovinos.

"Esse pasto, onde vivem os brancos, era a nossa aldeia", disse ao TBIJ Xinuxi Mỹky, líder da comunidade indígena que teve seu território invadido pelos criadores de gado. Essa fazenda comercializava com abatedouro da Marfrig, em Tangará da Serra. - © Typju Mỹky, Coletivo Ijã Mytyli de Cinema Manoki e Mỹky

Para vender sua carne, “os agricultores sempre encontram uma solução“, diz Lisa Rausch, pesquisadora de políticas de desmatamento no Brasil da Universidade de Wisconsin. “Cada animal vale muito dinheiro, mil dólares, por exemplo, então eles vendem para quem quiser: para um grande matadouro, para um pequeno matadouro que não verifica, ou para outra fazenda que vai vender depois.

Apesar de condenar a lavagem de gado, a Marfrig reconheceu que se abastecia da fazenda Estrela do Sangue. A empresa afirmou estar pronta para “tomar medidas apropriadas (…) se forem detectadas irregularidades”, mas fez questão de ressaltar que a fazenda não estava interditada. “Eles sempre insistem em seus fornecedores diretos, alegando que controlam e monitoram a cadeia de suprimentos, mas os fornecedores indiretos são sua grande fraqueza“, expressou Mariana Gameiro, da ONG Mighty Earth.

 

A demanda internacional, cúmplice da destruição da Amazônia

A carne bovina proveniente de áreas desmatadas pode, ao longo dos anos, circular de uma multinacional a outra, antes de ser vendida ao consumidor, seja ele brasileiro ou estrangeiro. Isso se dá ao fato que os frigoríficos do país exportam cerca de 20% da sua carne. Aproximadamente 1% da produção total brasileira vai parar na União Europeia e no Reino Unido, parcela que pode parecer enxuta, mas que corresponde a aproximadamente 100 mil toneladas por ano.

Por meio de uma análise exclusiva realizada pelo instituto de pesquisa AidEnvironment para o consórcio jornalístico, foi possível tentar avaliar o impacto dessas exportações sobre o desmatamento na Amazônia. Nos últimos seis anos, 17 mil quilômetros quadrados de terra, o equivalente a cerca de 800 milhões de árvores, foram desmatados nas áreas abastecidas por cerca de 20 dos maiores abatedouros de exportação na Amazônia (veja a metodologia no final desta reportagem). Desses abatedouros, 13 pertencem à gigante JBS, três à Minerva e seis à Marfrig, para onde o fazendeiro Ronaldo da Cunha envia seus animais.

A Amazônia não pode se dar ao luxo de perder tantas árvores… isso tem implicações globais“, expressou Alex Wijeratna, da ONG Mighty Earth, ao consórcio jornalístico. Nos últimos quarenta anos, mais de 17% da floresta amazônica foi destruída, enquanto os cientistas estimam que o “ponto de inflexão” da Amazônia está em torno de 20-25%. A partir desse ponto, a floresta tropical começaria a assemelhar cada vez mais a uma savana, e a famosa “defesa natural” contra as mudanças climáticas poderia colapsar.

Em 2020, a investigação de Dom Phillips e de seus colegas jornalistas mostrou que, uma vez lavada, a carne bovina dos Rodrigues da Cunha proveniente do desmatamento teve destino em frigoríficos da JBS autorizados para exportação, principalmente a Hong Kong, o maior importador de carne brasileira. A empresa declarou que já não se abastece nas fazendas mencionadas. Três anos depois, com a mudança de abatedouro, os documentos consultados indicam que o gado de Rodrigues da Cunha revendido no abatedouro da Marfrig, em Tangará da Serra, também teria direito a ser exportado para a União Europeia, já que, no papel, eles atendem às exigências sanitárias europeias.

 

O efeito de Roterdão

Entre os corredores frios dos atacados holandeses Markro, Sligro e Hanos, geralmente reservados a donos de restaurantes ou hóteis, nossos parceiros do NRC encontraram produtos refrigerados ou congelados do mesmo frigorífico da Marfrig em Tangará da Serra. Em um dos pedaços de carne, encontra-se a data do abate do animal: 19 de janeiro de 2023, o mesmo dia em que animais da fazenda Estrela do Sangue, de Ronaldo Rodrigues da Cunha, também foram abatidos, segundo dados públicos disponíveis no site da Marfrig. Porém, é impossível provar que são os mesmos animais, uma vez que os rótulos não fornecem informações sobre as fazendas de origem.

Carne bovina encontrada no atacadista holandês Makro, que pertence ao grupo alemão Metro. O número SIF 1751 é a aprovação sanitária do abatedouro da Marfrig Tangará da Serra

Nenhuma das empresas envolvidas contestou as investigações. O atacadista Makro reconheceu haver tido “problemas no passado” com esse abatedouro, sem comentar sobre o novo caso. O supermercado Sligro justificou suas importações como uma resposta à demanda excepcional após a crise consequente da pandemia de COVID-19. Já o atacadista Hanos afirmou que ficou “chocado” com as informações apresentadas e que está averiguando seus importadores para “tomar as medidas necessárias“. O diário holandês NRC também entrou em contato com vários restaurantes do país que ofereciam carne brasileira aos seus clientes, mas apenas a rede Loetje, com mais de 30 pontos de venda, respondeu à solicitação. A rede confirmou que obtinha seus suprimentos do abatedouro, mas disse haver parado imediatamente após as revelações dos jornalistas.”Cada bife que contribui para o desmatamento é um bife em excesso“, disse Loetje.

Entre outros clientes europeus do abatedouro da Marfrig, que tem origem nas fazendas Rodrigues da Cunha, se encontra a Jacobsen, atacadista alemão de carnes. Em seu site, no entanto, a empresa afirma que nenhum de seus sócios atua na região amazônica. O atacadista não respondeu às perguntas dos jornalistas.

A investigação também permitiu vincular esse abatedouro ao conglomerado Nestlé. A fábrica de Tangará da Serra aparece na lista de fornecedores do grupo disponível online no momento da publicação deste artigo. Ademais, o gigante do setor alimentício, entrevistado pelo parceiro Paper Trail Media, confirmou que a carne bovina brasileira foi usada em produtos da marca alemã Maggi até março passado. Quando contatado posteriormente pelo consórcio, o grupo negou que ainda fosse cliente do frigorífico e se recusou a dar mais detalhes sobre suas importações para a Europa.

A carne, portanto, parte da Amazônia, da cidade de Tangará da Serra, para a Alemanha e para a Holanda, mas esse não é seu destino final. Parte da carne exportada para os Países Baixos é revendida na Europa ou em outros locais. Trata-se do “efeito de Roterdão”, termo que referencia a cidade portuária que atua como um centro internacional. E a partir daí a carne deixa de ser rastreável.

Essa carne, que provém potencialmente de terras desmatadas, pode, consequentemente, ser encontrada em toda e qualquer parte da Europa. Uma situação que dificulta a aplicação de uma lei europeia votada no mês passado. Este texto, que deverá entrar plenamente em vigor até 2025, visa garantir que vários produtos, incluindo a carne bovina, resultantes do desmatamento, deixem de ser encontrados no mercado europeu. A lei foi bem recebida pelas ONGs, que continuam preocupadas com as “brechas de barganha”, visto que um possível acordo de livre comércio entre a União Europeia e os países do Mercosul, que inclui Brasil, poderia aumentar as exportações.

 

Para a carne cozida, a rastreabilidade que deixa a desejar…

Ao traçar uma cadeia de suprimentos, existem alguns produtos que são mais difíceis de rastrear do que outros. Esse é o caso da carne cozida, cuja origem se perde de uma ponta à outra da cadeia. Inicialmente, para garantir que os produtos importados pela União Europeia não sejam frutos de desmatamento, “a única opção possível é um sistema de marcação auricular com rastreabilidade ao nível animal“, explica a pesquisadora americana Lisa Rausch. Um sistema que já é obrigatório em parte da rota da carne destinada à Europa, mas não para a carne cozida.

Um exemplo de carne cozida que é facilmente encontrada na culinária francesa é a língua de boi. Para muitos franceses, a iguaria é um produto 100% originário do país. “Comemos na casa dos avós, comemos aos domingos, para nós era um prato festivo!” comenta com entusiasmo a renomada cozinheira e apresentadora de TV francesa Maïté em um vídeo de arquivo do Institut National de l’Audiovisuel (INA). Hoje, raramente feita em casa, a língua de boi continua a ser um “produto emblemático” da restauração coletiva, que inclui hospitais e escolas. De acordo com um estudo de 2013 encomendado pela FranceAgriMer, órgão subordinado ao Ministério da Agricultura Francês, que não foi refeito desde então, a língua de boi cozida pode ser importada do Brasil.

Porém, o relatório não fornece números precisos sobre as importações. Ademais, as línguas de boi cozida não possuem um código aduaneiro que as distinga de outros pratos preparados com carne, o que dificulta ainda mais seu monitoramento.

Cartaz da origem da carne em uma cantina escolar na França. Pelo contrário, não há obrigação de fazer isso para pratos preparados, como a língua de carne bovina cozida vendida já pronta para o consumo.

Importadas já cozidas, as línguas de boi são uma solução ideal para serviços de restauração de larga escala, como escolas ou hospitais. É mais barato e mais rápido de servir do que uma língua de carne fresca ou congelada, que normalmente requer horas de preparação. Um trunfo em termos orçamentais, mas uma má notícia para a transparência.

 

Falta de transparência na Europa

Para tentar rastrear a origem do produto no Brasil, foi necessário ler atentamente as instruções dos atacadistas que abastecem os restaurantes ou as cantinas de empresas. Alguns deles disponibilizam seu catálogo online com conselhos práticos ou ideias de preparação do alimento. Para seus clientes, o atacadista Pomona, que não respondeu às solicitações dos jornalistas, sugere, por exemplo, trocar nos cardápios o termo “língua de carne ao molho picante” por um delicioso “bife macio de carne ao molho forte” e adicionar mostarda de acompanhamento. Às vezes, além de sugestões, o atacadista também indica a origem precisa do produto. Porém, é necessário conhecer os códigos para descriptografá-los. Para a língua bovina Pomona, encontramos um número de aprovação sanitária: SIF 337. Um número que identifica o matadouro de onde vem a carne, e que nem sempre é comunicado de forma acessível pelos atores do setor.

"Ficha técnica" da língua de boi oferecida pelo atacadista Pomona

Outros fornecedores europeus de restauração, como a Sysco e a Espri Restauration, cujo catálogo lista línguas de boi de origem latino-americana, não responderam aos pedidos de entrevista, por, como alguns afirmam, “razões de confidencialidade e concorrência“. Também foram contactadas as marcas francesas Maison Larzul e o grupo Jean-Hénaff, cujo estoque de língua de boi não se origina na Europa, mas é apresentado como “produtos regionais” no site da rede de supermercados Carrefour. O grupo Jean-Hénaff confirmou que importa língua de boi do Brasil, mas nenhuma das marcas forneceu seu número SIF.

Esse número é, no entanto, valioso para desenhar a cadeia de suprimentos e monitorar a origem da carne. Sob a aprovação sanitária número 337, por exemplo, esconde-se o abatedouro da JBS em Lins, São Paulo. É uma das grandes usinas de processamento de carne bovina do Brasil e um grande exportador para os Estados Unidos e Europa. Mesmo que a fábrica esteja localizada fora da Amazônia, é impossível garantir que os produtos que saem de seu armazém não sejam frutos de desmatamento. Primeiramente, porque a JBS Lins obtém pedaços de carne de frigoríficos espalhados por todo o Brasil, até mesmo ao norte, no Pará, por exemplo. A JBS, no entanto, não quis se pronunciar. Em segundo lugar, porque a fábrica já havia sido investigada pela parceira Repórter Brasil, que relatou diversos casos de lavagem de gado: revelações centrais da reportagem citada por Dom Phillips em seu tweet como “a última gota”. Essa foi uma investigação que levou vários supermercados europeus a retirarem de suas prateleiras os produtos desta fábrica, bem como de outros abatedouros.

Para Alex Wijeratna, da ONG Mighty Earth, que participou desta investigação da Repórter Brasil de 2021, essa é mais uma prova de que são sempre “os pesquisadores, os jornalistas e a sociedade civil que acabam verificando se os compromissos são cumpridos“. Dom Phillips dedicou sua vida a isso, e agora outros assumiram essa importante responsabilidade deixada por ele.

 

Metodologia

Como foram calculados os 17 mil km² de desmatamento?
 
O estudo abrange 22 de aproximadamente 30 frigoríficos da Amazônia brasileira licenciados para exportação, que são propriedade das três maiores multinacionais de carne bovina do Brasil: JBS, Minerva e Marfrig. Após análise dos dados de comércio, os abatedouros foram escolhidos entre os que mais exportaram nos últimos anos para a União Europeia, Reino Unido e China. Outras empresas obtêm seus animais nas mesmas áreas de compra.

Hoje, é praticamente impossível conhecer todas as fazendas que abastecem esses abatedouros, pois uma carne bovina pode passar por várias etapas antes de chegar no seu destino. Embora tenham se comprometido com o Greenpeace a controlar seus fornecedores indiretos em 2011, JBS, Marfrig e Minerva ainda não atingiram essa meta.

Para quantificar o desmatamento, um dos métodos utilizados consiste em analisar as áreas onde os frigoríficos obtêm seus animais. Comprovados pela ONG brasileira Imazon, que utiliza diversos fatores –como o estudo de estradas, de distâncias máximas e informações confirmadas por especialistas– para traçar as fazendas que cercam os frigoríficos, e coleta provas para afirmar um vínculo comercial. É a partir desse método, combinado ao estudo de imagens de satélite, que se mede o desmatamento, apesar de sofrer críticas por parte da JBS, quando contactada pelo consórcio. A Minerva e a Marfrig, por outro lado, se conformaram em relembrar de seus vários compromissos contra o desmatamento e o controle de seus fornecedores diretos. A Marfrig também declarou que controla 80% de seus fornecedores indiretos na floresta amazônica.

O estudo, realizado pela AidEnvironment, uma agência de consultoria ambiental sem fins lucrativos, foi encomendado com financiamento do Bureau of Investigative Journalism. Os produtos frutos do desmatamento podem ser encontrados em diferentes países, mas foram investigadas especificamente as regiões do consórcio jornalístico: Reino Unido, Países Baixos, Alemanha e França.